Este texto foi escrito quando, no carnaval de 2008, uma conhecida Escola de
Samba do Rio de Janeiro preparou uma ala sobre o Holocausto, e foi barrada pelo
clamor dos judeus brasileiros. Isto causou uma polêmica de proporções
homéricas sobre a liberdade de expressão. Abaixo, segue minha
conclusão sobre o assunto:
Uma das mais tristes consequências de nossa crescente liberdade de
expressão é que, com ela, decresceram duas qualidades essenciais
do caráter de um indivíduo: a honra e a dignidade. Elas ficaram
fora de moda, algo que se descarta com a roupa. Mas, ao contrário do
que acontece com a roupa, honra e dignidade não se pode vestir outra
vez. Ao se despir delas, o homem comete um ato irreversível - ele despiu
não seu corpo, mas seu caráter.
Carnaval é uma festa de total liberdade de expressão. O único
problema é quando esta liberdade de expressão extrapola os limites,
e lança desonra e indignidade em algum fato ou ato de alguém mais.
Considero o strip-tease como Arte. Inclusive, há pessoas que conseguem
fazer do despir-se uma Arte sem nem mesmo tentar, por serem, elas mesmas, belas.
Portanto, não tenho absolutamente nada contra corpos nus, cobertos de
glitter e contas, dançando na passarela. Não os considero imorais
- são lindos. Se quando eu morrer outra vez alguém quiser sambar
desnudo ou desnuda no meu cortejo fúnebre, que seja bem-vindo (a). Talvez
eu gostasse que a dança se desse ao som da antiga marchinha de carnaval
do tempo de meus pais, "Estrela Dalva", mas talvez isto fosse pedir
demais.
Contudo, amigos, esta é uma escolha minha. Não tenho direito
algum de impo-la a alguém mais, e fazer do dançar-se o samba desnudo
em funeral uma regra para todos.
Ora, o samba, o carnaval, tem origens também africanas, e nada mais
correto do que se mostrar os anos terríveis da escravatura em um cortejo
na Avenida: são seus próprios descendentes rendendo homenagem
aos seus próprios antepassados.
Agora - o Holocausto, que matou milhares e milhares de pessoas, também
atingiu uma nação inteira, quase erradicando uma raça da
face do globo: os judeus. E, em sua grande maioria, as vítimas do Holocauto
eram Judeus Ortodoxos, que consideram a morte como algo sacro. Para o povo judaico,
dançar samba desnudo não representa homenagem alguma, mas uma
desonra e uma indignidade - uma desecração.
Amigos, o chavão é necessário: nossa liberdade termina
onde começa a liberdade de outrem. Sei que a maioria vai gritar e espernear,
mas esta é a regra do convívio pacífico no Universo. Vejam
os astros - eles não saem de suas órbitas ao cruzarem o espaço,
portanto não colidem-se uns com os outros. Quando isto acontece, o cataclisma
se faz sentir por todo o Universo. Para que a dança das estrelas se perpetue,
é preciso que cada corpo celeste siga seu curso, livre e sem obstáculos,
mas sem interferir com o curso de outro.
Todo homem e toda mulher é uma estrela, amados, cada um brilhando com
sua própria luz, ou a luz emprestada de sua escolha, e percorrendo um
caminho individual que deveria ser completamente livre de interferências,
e, portanto, sem interferir no caminho de outro indivíduo.
Ah, que perfeição seria encontrar pessoas orando juntas! Uma
ajoelhada sobre um tapete, rosto ao chão, afirmando que Allah é
grande; uma em pé, mãos à altura da boca, movendo-se para
frente e para trás, clamando por Adonai; outra de joelhos, mãos
postas, olhos para cima, buscando por Jesus Cristo; outra ainda em pé,
braços estirados, invocando a Grande Mãe; ainda outra, dançando
ao som do atabaque, evocando Ogun; e mais outra, pernas cruzadas, entoando um
mantra às forças universais. E haveria muitas e muitas outras,
inclusive aquelas que apenas sentassem, observando com curiosidade as manifestações
dos demais.
Mas isto é apenas mais um sonho, como aquele de Martin Luther King Jr.
Contudo, ainda que apenas sonho, posso viver à luz dele, e respeitar
a fé ou a descrença daqueles que me rodeiam - ainda que ninguém
mais o faça.
Afinal, a escolha de ser-se digno e honrado é inteiramente pessoal.